terça-feira, 27 de outubro de 2009

Delírios Coletivos

      No princípio nossa vida era sem graça. Não precisávamos dormir, comer, beber nem fazer sexo e constantemente tinha alguém nos adorando, agradecendo ou pedindo algum favor que curiosamente chamavam de milagre. Bem, no início tinha um teor de favor, mas com o tempo passamos a disputar, em espírito de brincadeira, quem atendia mais pedidos e recebia mais agradecimentos, como se fosse um campeonato. A diversão até durou, mas foi esfriando progressivamente. Poucos de nós ainda se animavam e, com isso, alguns pedidos eram atendidos, outros não e outros parcialmente.
     Aproximadamente nessa época se iniciou um movimento pequeno que rapidamente tomou consistência e se tornaria uma corrente revolucionária da qual fiz parte e trevelarei para o leitor (não há tradução para trevelar, mas o conceito se aproxima de escrever e revelar verdade para outro plano metafísico).
     Apesar de não precisarmos dormir, uma ideia brotou, não se sabe de onde, e começamos a nos reunir para combinar o que viveríamos enquanto dormíssemos — dormir era possível, só não era necessário. Surgia, assim, uma infinidade de possibilidades de diversão. Lembro que, cada vez que acordávamos, conversávamos bons papos sobre as coisas que criáramos e já queríamos dormir novamente para continuar. Era um mundo sem limites ao qual tanto me apeguei, que gosto de chamá-lo de o nosso novo mundo.
        Sonhávamos e construíamos o nosso sonho ao mesmo tempo. Nos demos limites carnais e inventamos a alegria e a dor. Os períodos em que ficávamos acordados foram se reduzindo à medida que dormíamos mais e mais. Alguns de nós inventaram doenças e confesso que ficou mais divertido ainda, porque rapidamente um outro grupo criou entidades para as quais a maioria pedia a cura. A improbabilidade e a incerteza, lenta e ironicamente, nos viciaram, nos aprisionaram. Hoje ninguém mais quer acordar. Finalmente, achamos um local para sermos diferentes e imprevisíveis. Dormimos eternamente para nos sentirmos mortais. #

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